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domingo, 18 de março de 2012

A construção do desamor


Minha tranquilidade no segundo sábado de março foi interrompida pelos brados desesperados de um pai que praticamente urrava: “Romero*, pelo amor de Deus, levante do chão, meu filho! Romero, o que você tem, meu filho? Abra a boca, Romero, pelo amor de Deus!” Ao fundo, podia-se ouvir um choro de agonia límpida e arrepiante. A mãe praticamente gania diante da cria, que eu não via, mas, apavorada, adivinhava.
O som vinha do prédio de trás e entrava pelas janelas da minha casa inundando meu equilíbrio emocional. A voz do homem retumbava estremecendo meu corpo inteiro; só consegui rezar em voz baixa: “Deus, salve esse menino, por favor!” Foram momentos de terror testemunhados silenciosamente por outra mãe. De repente, um nada. O ambiente voltou à calma natural de uma vizinhança silenciosa. Dentro de mim, o estrago da lembrança de que a vida poderá puxar o tapete de flores onde deposito o amor pelo meu próprio filho. Rezei novamente: “Deus, pelo amor de tudo que há, primeiro eu, depois, muito tempo depois, meu filho!”
Minha cabeça estava prestes a explodir; certamente, minha pressão arterial foi ao píncaro e  só havia diurético em casa. Quase confessei ao meu filho estar me sentindo mal; entretanto, preferi apostar no mantra “passou, passou, passou...”. Tarde de cão para os protagonistas e para mim. Somente no fim da noite, depois do entorpecimento do vinho regado à conversa amiga, senti uma tíbia melhora. No domingo, tive a sensação da ressaca do choro não derramado do dia anterior. Fim de semana de arrepiar.
O calendário girou novamente trazendo o terceiro sábado de março e a mesma voz de homem troou no início da noite: “Romero, seu filho da p**, vai tomar no seu c***! Minhas coisas ficam embaixo! Está chorando por causa de quê?” O pai do filho daquilo repetia, aos berros, os palavrões para aquele mesmo filho que, exatamente há uma semana, convulsionou-se caído ao chão. Mais ou menos uma hora antes, a mãe chamava a atenção do filho, gritava que estava de castigo e que não o deixaria sair.
Não sei a idade do Romero, não se escuta sua replica. O macho alfa é o pai; um perfeito animal. O tom da voz do homem traduz sua condição inculta, pouquíssima educada e extremamente machista. Pressinto uma família infeliz e acostumada a abusos hereditários. Que espécie de homem os pais do Romero vislumbram ajudar a formar? Senti ira por esse casal covarde e inconsequente; senti asco das vozes que algumas vezes arranharam a paz da redondeza com suas brigas domésticas. Pobre mulher subjugada; testemunha que não reage. Onde foi parar a leoa que habita cada mãe de sangue quente? F-i-l-h-o é palavra que sai doce da boca dos pais; pelo menos deveria ser assim.
De que adianta tanta inovação em todas as áreas se o homem involui no sagrado?
Oração de hoje: “Deus, presenteie aquela casa com uma brisa de poesia e amor!” Milagre, só divino, mesmo!

 foto tirada no Beco do Batman, na esquina da rua Harmonia, na Vila Madalena, em São Paulo.

* o nome foi trocado em respeito à vítima;
** as putas que me perdoem, mas quem usou o nome como xingamento não fui eu;
*** nome feio que traduz o máximo do ódio por alguém.

2 comentários:

leop10 disse...

Life is hard sometimes... Hoje, na missa, ao final, um senhor se dirigiu a mim, após observar o carinho com que tratávamos a Pinguim Mirim, com os olhos marejados: - "Criei duas filhas, que hoje são professoras. Nunca precisei bater nelas...". E não disse mais nada. Acho que ele se lembrou do passado, sei lá. Só sei que uma calmaria tomou conta de mim. Deus nos aparece em momentos inadvertidos. Cai o pano.

Susanices disse...

Não tenho a menor dúvida de que a pinguinzinha é muito amada e bem tratada pelos pais. Mas, um toque desse tipo é sempre útil para a gente ficar atento e não descontar nossas frustrações adultas nos pequenos.