abas

domingo, 18 de março de 2012

Foi fato e não fantasia - muito tenso.

A menina de apenas três anos estava odiando aquele lugar infernalmente quente e irrespirável. Sua mãe havia retirado o vestido de domingo e a deixara somente de calcinha. O problema é que ela usava uma de suas "calcinhas de sair". Naquela época, as crianças usualmente tinham calcinhas caras - da marca Valisère, de tecido sintético, inadequado para o clima do Rio de Janeiro e com babadinhos do próprio tecido em quase toda sua extensão posterior - para sair. As calcinhas de ficar em casa, brincar e ir à escolinha, sua mãe costurava em casa, em tecido de algodão e com rendinhas nas pontas.
Essa criança era eu, e me lembro desses detalhes perfeitamente. Ficaram gravados na minha memória, provavelmente, pelo horror estampado nos rostos familiares.
Carrego somente três lembranças de nossa ida ao fatídico circo; a segunda delas, é o barulho do estalido do chicote do domador dos elefantes. Muitos anos mais tarde, minha prima Regina me explicou que o domador chicoteava o chão, e não os elefantes. Já era tarde demais, a então Susaninha estava detestando aquela aparente crueldade com os animais e queria ir embora daquele local onde não sentira prazer algum em estar. Meu sentimento de desconforto dentro daquele lugar sufocante faz parte da minha cena do domador de elefantes. E se eu tivesse pedido: "mãe, vamos embora?" Minha fama era de criança boazinha e obediente, aguentei até o fim. Esse comportamento me salvou a vida, mas disso eu saberia três décadas depois.
No domingo 17 de dezembro de 1961, as mulheres da família Guimarães (minha mãe, a tia Thereza e a tia Áurea) foram com as crianças ao circo enquanto os maridos, apaixonados por futebol (meu pai e tio Geraldo) - levando meu primo Paulo (menino, ainda), filho do tio Geraldo e da tia Áurea -, foram ao Maracanã assistir Botafogo e América. Segundo relato do Paulo, ele estava com o radinho de pilha ao ouvido - ao mesmo tempo em que presenciava o jogo - quando escutou o alarme dado pela rádio: "pegou fogo o circo em Niterói e tem muita gente morta!". Paulo conta que meu pai e meu tio correram para fora do estádio em direção ao carro de seu pai e praticamente se esqueceram dele. O menino era acostumado a correr atrás de cafifa e balão e não ficou para trás. Ocorre que, naquela época, não existia a ponte que liga as cidades. Ir de carro ao Maracanã implicava em uma travessia demorada de barcaça pela baía de Guanabara. Nos anos sessenta não havia telefones celulares e mesmo os telefones fixos, eram raros. Conta o meu pai, que o capitão avisou que não atracaria a barca porque estava desesperado: sua família também havia ido ao circo. Quem estava a bordo saltou para o pier de atracamento deixando seus carros para trás. Os homens correram para o bar mais próximo e telefonaram para a casa do meu avô Zózimo, que deu a notícia: "estão todos salvos, estão aqui." Meu tio desmaiou.
Durante toda a minha vida ouvi muito pouco sobre o incêndio. Minha família evitava reviver o episódio, minhas amigas nunca comentaram e, durante muitos anos, não contei a ninguém que quase não tive a chance de construir minha própria história. O fato é que o assunto é tabu em Niterói. A dor sempre foi grande, porque poucos se salvaram sem nenhum arranhão - foi o nosso caso -; quando criança, via muita gente com a pele queimada. Lembro de minha mãe comentando baixinho em meu ouvido: "fulana (geralmente eram mulheres) estava no circo." Muitas "fulanas" perderam seus filhos na ocasião. O assunto era indigesto, ninguém ousava escarafunchar aquela ferida muito mal fechada.
Estava com trinta e muitos quando a minha amada tia Thereza, para comprovar o quanto me amava, disse-me com todas as palavras: "voltei para buscar você no circo, você estava sentadinha no mesmo lugar; peguei você no colo e, quando saímos, a lona tombou incendiando tudo."  Todos os pelos do meu corpo se arrepiaram de espanto e emoção. Respondi: tia, eu lembro de estar sentada sozinha nas cadeiras de madeira. Era a minha terceira e última memória do ocorrido. Nunca havia mencionado essa lembrança, aparentemente fora de lugar. Como eu poderia estar sentada no circo rodeada por cadeiras vazias? Parecia uma recordação inventada, mas não era. Fechou!
Ao ler o livro, entendi tudo; compreendi o motivo do tabu não imposto, mas escolhido. O relato sobre os que voltaram para buscar alguém que havia ficado - às vezes esse alguém já havia saído - demonstrou o sentimento uniforme sobre o que dizer aos pais a respeito da perda quem estava junto. A maioria dos que voltaram não sobreviveu.
Ao saírem pela entrada dos artistas, minha tia notou que eu não estava e voltou. Desvencilhou-se dos que não queriam deixar que ela entrasse no incêndio e salvou a minha vida. Foi loucura retornar, mas, depois de ler o livro, compreendi que a minha tia jamais poderia encarar o irmão predileto se deixasse sua única filha ser consumida pelo fogo. Estragaria a vida de ambos; dificilmente ela conseguiria ter paz consigo se não tentasse. Minha tia, minha heroína. Sorte minha ter tido ela por perto.
Meu pai, ela e eu sempre tivemos uma ligação muito profunda; elo selado, definitivamente, em uma tarde tórrida e tenebrosa na então capital do Estado do Rio de Janeiro.

Obrigada, minha tia, o paraíso certamente é a sua morada! Espero merecer deitar minha cabeça em seu colo, como antes, sentindo suas unhas acariciando meu cabelo; por toda a eternidade.

7 comentários:

regina disse...

Susaninha que lindo.....me emocionei, Tia Tereza era um dos Anjos de Deus, não tenho dúvida nenhuma disso...meu pai ha 10 anos atras estava muito doente,lembro dela levando umas empadinhas para ele para ver se ele comia alguma coisa... pois ela rapidamente adoeceu e foi 2 meses antes dele,certamente para espera-lo de braços abertos! um beijo, Regina.

Susanices disse...

Nossa tia era assim: fazia tudo pelos seus. Acho que você está certa, minha prima, ela foi antes para não deixá-lo sozinho na jornada desconhecida.

Lúcia Motta disse...

Lindo, Su. Me emocionei, também.

Susanices disse...

e você nem era nascida, hein, Lúcia Motta?!

leop10 disse...

Vejo o livro na Travessa e penso: "Vou comprar para Su!", mas deixo pra lá, meio que pensando que é um tema sórdido. Veja só, mesmo eu que não era nascido na época - assim como nossa amiga jornalista - tenho o mesmo sentimento daqueles que o viveram: "vamos apagar isto da memória!". Comento com minha esposa, que fala: - "Cruz-credo, Léo, dar isso para sua amiga. Ainda mais ela que viveu aquele horror...!" Pois aí está, neste texto, o segredo da felicidade: redesenhar um evento terrível para lembrar, com saudade, de um ente querido, ou melhor, como a própria autora diz, uma heroína. Lindas palavras, Su!

Susanices disse...

Obrigada, Léo!

Esse livro não é do tipo que se ouse presentear a alguém de Niterói; nunca se sabe a reação. Comprei, assim que saiu, para obter algumas respostas.

Ana Lucia Pimentel disse...

Susana querida vc já havia me contado com todos esse detalhes essa sua história. Hoje relendo me emocionei muito, só em pensar naquela menina sozinha numa fila de cadeiras vazias fiquei achei que nem todo mundo que estava lá teve a oportunidade de sair com vida. Mas vc teve uma Tia Tereza maravilhosa ! Que bom que vc era uma menininha muito quietinha !!!!!Beijos !