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sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Crônica Paralela




Naquela manhã fresca e ensolarada, percorri o interminável sobe e desce das calçadas do bairro de Pinheiros, na cidade de São Paulo. Minha saia dançava entre minhas pernas enquanto meu pensamento fluía sobre um fundo alvo e tranquilo. Os sons do ambiente a minha volta não influenciavam o meu humor; eu cantarolava sem utilizar a língua. Uma lufada de vento rasteiro embolou um punhado de papel no meu calcanhar e não tive outra saída senão parar e resgatar aquelas páginas finíssimas de seda. Desdobrei o retângulo branco e encontrei uma letra invejável. "Mia, embora esse não seja o seu nome, nossa história é parte de um cenário inventado no qual somos personagens fictícios."
Era uma carta de três páginas, desenhadas por letras firmes, grandes e regulares. Senti uma ponta de inveja da caligrafia e constrangimento pela curiosidade em conhecer o conteúdo. Seria ético ler uma correspondência alheia, mesmo que tenha voado até mim? Nós três estávamos protegidos pelo anonimato; resolvi seguir em frente e não ceder à tentação de pular as duas páginas para ler o final e ver a assinatura.
A poucos metros, vislumbrei o café em frente à praça; estava adiantada para o meu compromisso, havia tempo de sobra para me sentar e tomar um cappuccino enquanto transgredia meu próprio comportamento. E se os donos aparecerem agora e me pegarem em flagrante? Olhei para os lados e não havia ninguém interessado em nada além de olhar para frente em ritmo rápido de coelho de Alice.
Pedi a bebida e voltei à leitura despudoradamente. "Nessa história de quase amor, não há lugar para relacionamento; são os nós das cordas que nos unem, nossos apelidos concebidos nos esconderijos de gente como você e eu."
Quem são esses dois? Parceiros de crime, de ideologia ou quem sabe de uma sociedade secreta? Agora eu estava realmente curiosa. Seja lá em qual categoria eles poderiam ser classificados, era um mundo novo pra mim e eu certamente iria me divertir com a leitura surreal. Bela e implacável, a escrita continuava: "Os caminhos que você vem percorrendo ao meu lado são meus velhos conhecidos. As mulheres são diferentes e iguais, ao mesmo tempo, mas sempre previsíveis. Algumas têm garra afiada de algemas que tentam me possuir - essas, têm prazo de menos de dois anos de validade. Você, não, é escrava, pertence a mim, não pode me aprisionar. No entanto, a submissão tem um preço salgado, lágrimas e cobranças estão fora do contexto. Como era esperado, as unhas femininas começaram a crescer e o quarto, antes arejado, tornou-se insuportável de se respirar. É a minha hora de partir; outro metrô virá atrás."
Não estava divertida, era uma carta de despedida de uma acidez assombrosa. Escrava, senhor(a?), cordas e o descaramento do aviso de que era hora de caçar outra. Carne nova.
Senti um enjoo. Teria sido o café forte do cappuccino? Era melhor eu pedir uma coca; estava zonza. Os esses e pês se confundiam na minha leitura, agora um pouco turva; eu lia sem o prazer da curiosidade, varria burocraticamente as palavras duras e incompreensíveis.
_ "Você é minha, mas não consegue deixar de ter a vida comum de mãe de cinco filhos; a vida mediana, ordinária."
5 filhos? Como uma mulher com cinco filhos consegue tempo para entrar nesse mundo estranhíssimo de BSM? Seriam de um mesmo pai? O casamento - ou casamentos - teriam sido nesses termos? Ainda estaria casada? Essas respostas certamente não seriam encontradas nas três páginas apertadas em minhas mãos. Pesquisarei sobre o assunto quando tiver tempo. Acho que não conheço ninguém do meio para perguntar. Será? Voltei a me interessar pelo texto e compreendi o ponto de vista do autor - ou autora - da carta. Filharada alheia, emprego medíocre, vida mediana e, provavelmente, essa mulher deve levar uma vida sem muito charme e facilidades. Cuidar de cinco filhos não deve ser nada fácil! Senti um arrepio ao pensar que, no lugar dela, perderia o equilíbrio. Pensando bem, que sanidade tem uma mulher que se escraviza por conta própria?
_ "Você é bastante esforçada em me agradar; desempenha essa função com maestria. Escrava sênior, é assim mesmo que eu gosto! Procura ter os meus gostos e demonstra se indignar com o que também me é sensível. Mas a gente não tem nada a ver com o outro, percebo que seus comentários, exageradamente permeados de citações, perdem o vigor quando você expõe seus próprios pensamentos. Suas frases são desconexas quando você tenta ser o que não é. De um jeito ou de outro, o desencaixe acontece; acho que nunca fomos conectados."
Humilhação ao extremo. Faz parte desse jogo de controle e submissão? Não bastaria o pé na bunda, ainda era preciso pisar e rodar o pé, como se faz com um cigarro aceso?
Dei cabo da primeira página meio abalada, fiquei na dúvida se teria estrutura emocional para continuar. De alguma maneira inexplicável me identifiquei com aquela mulher, estava lendo como se fosse endereçada a mim. Não seria escravidão ser refém de uma paixão? Tive uma vertigem passageira e senti o gosto ferruginoso de sangue na boca.
Chamei o garçom para pedir o refrigerante enquanto descolava a segunda página da última. Outra rajada de vento me pegou no exato instante da troca de papéis nas mãos e levou embora justamente as folhas não lidas. Fiquei com expressão abobalhada agarrando a primeira página inutilmente. Nem pensei em correr atrás, porque a cena parecia de uma Mary Poppins às avessas. Libertei o papel que borboleteava em minha mão. Cada página tomou uma direção distinta; estavam livres dos olhares curiosos como os meus. Nunca saberia o final da carta, mas da história, certamente poderia imaginar. O autor, ou autora, estava a salvo. Olhei no relógio: hora do meu encontro. Engoli a bebida gelada e gasosa inibindo um arroto de consolo.
Atravessei a praça procurando a figura conhecida. Ele veio ao meu encontro vestindo seu sorriso amplo que tanto me atrai. Por trás dos óculos escuros adivinhei seus olhos quentes de alegria por me ver. O abraço apertado veio acompanhado do murmúrio misturado a um suspiro: "meu amor!" Ele não notou a lágrima desobediente enquanto nos beijávamos. Chorei pela mulher desafortunada e pela minha alegria e conforto de saber-me amada e rainha.

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5 comentários:

leop10 disse...

Sensacional!

Susanices disse...

Ahahahaha...bem Léo, mesmo!Bj

Lúcia Motta disse...

Uau!!!

Blog Editora Limiar disse...

gostei bastante... criativo e inteligente... like U

Susanices disse...

Que bom que você apreciou seu presente de aniversário de 2012, Norian!